Sandra Campos
Quanto vale a realização de um sonho? E alguém com uma doença grave tem ainda capacidade para sonhar? Um sonho está ao alcance de todos? No Natal, somos levados a retirar do baú as mensagens de esperança, paz e alegria. E o mundo inunda-nos com apelos à solidariedade, ao mesmo tempo que nos impele a consumir de forma desenfreada. Mas quem está ao lado dos que mais sofrem, sejam crianças doentes ou adultos em fase terminal, sabe que as palavras de conforto e esperança não se podem esgotar na quadra natalícia. O DN foi ouvir histórias alegres de gente sofrida, com sonhos tornados realidade. E concluiu que, nestes casos, a frase feita encaixa na perfeição. Aqui, o Natal é mesmo todos os dias. Quando um homem quiser.
Tomás atropela-se nas palavras com medo que lhe roubem um minuto, que seja, de protagonismo. Quer ser ele a contar a surpresa que lhe bateu à porta há poucos dias. "Puseram-me uma venda e desci as escadas lá para fora. Quando olhei, estava tudo montado!", diz, com um sorriso esfuziante. O tudo era uma casa de madeira, elevada no quintal, com janelas e um telhado forrado a palha. Um sonho que trazia de longe e que acabava de se tornar realidade. "Fiquei tão contente...", conta, entusiasmado. Nesse dia, recorda a mãe, a excitação era tanta que Tomás nem conseguia dormir. O seu coração, dizia, "estava cheio demais".
Aos 17 anos, Tomás tem uma vida contagiante, mas uma doença que lhe vai roubando a rotina de um adolescente normal. À trissomia 21 detectada à nascença juntou-se a leucemia que há dois anos lhe foi diagnosticada, limitando-o no dia a dia. Nada que o impedisse de realizar o sonho antigo de ter uma casa de madeira. Foi a Terra dos Sonhos, uma associação fundada há dois anos com o objectivo de realizar sonhos a crianças doentes, que lhe proporcionou esta surpresa.
O dia em que a casa de madeira surgiu no quintal foi de festa e o imaginário infantil do esconderijo na árvore, que parece não ter idade, apoderou-se de todos. De Tomás, dos familiares e amigos e de Patrícia e Isabel, as duas "fofinhas" da Terra dos Sonhos, como carinhosamente as trata. Juntaram-se no quintal, houve lanche, convívio e até discurso do anfitrião, recorda, dando nome às pessoas que desfilam nas fotografias que o padrasto exibe no portátil. "Era o meu sonho há muito tempo...", desabafa.
Para quem não vai à escola e passa muito tempo em casa com a mãe, entretendo-se com a televisão, a música dos Morangos ou das Just Girls, e um diário preenchido com letras avulsas que não fazem qualquer sentido, ter um espaço próprio para brincar é motivo de enorme satisfação. Ao estilo do Inspector Gadget, personagem de que é fã, a casa é um autêntico posto de comando de investigações secretas. Tem câmara de vigilância, exige código para aceder ao interior, e tem um telescópio para espreitar a lua. "Gostava mesmo de ser um detective", diz.
Proporcionar esta alegria a Tomás foi relativamente simples, explica Frederico Fezas Vital, o presidente da Terra dos Sonhos, sublinhando que muitas vezes o difícil é mesmo não perder a capacidade de sonhar. No Instituto Português de Oncologia, onde vai regularmente fazer quimioterapia, e através da associação Inês Botelho, que trabalha em conjunto com a Terra dos Sonhos, o caso de Tomás foi sinalizado. A mãe foi convidada a preencher a candidatura e o desejo da casa era tão claro que nem foram equacionados outros sonhos. "Ele estava sempre a chatear o padrasto e o tio com isso", conta Paula Lima.
Uma equipa de voluntários da Terra dos Sonhos deu seguimento ao processo, validando o desejo de Tomás e arranjando patrocínios para a casa. Em conivência com a mãe, que teve de inventar uma desculpa para se ausentar de casa umas horas enquanto a estrutura era montada. Depois da surpresa, a interrogação de Tomás continuava sem resposta: "porque é que estas pessoas, que não me conhecem, me deram esta casinha?"
Frederico Fezas Vital dá a resposta. "Porque uma doença não nos pode fazer perder a capacidade de acreditar que temos recursos para concretizar os nossos sonhos. E porque momentos de alegria como este podem servir de âncora em horas de maior sofrimento", explica, resumindo, assim, a finalidade da associação. Além disso, acrescenta este ex-director de marketing, "está provado que há efeitos físicos que advém de experiências positivas".
Ao fim de dois anos, a Terra dos Sonhos conta com 900 voluntários e muitos patrocinadores que ajudaram a concretizar 123 sonhos e trabalham para realizar mais 53. Conhecer figuras públicas como Rita Pereira ou Luciana Abreu, ou jogadores do Benfica ou Sporting, são os mais solicitados. Mas Fezas Vital elege o sonho mais simples como um dos mais marcantes. "O de um rapaz que sonhava visitar uma fábrica de material escolar. Não podia ir à escola, mas vivia com o imaginário dos cadernos, estojos e lápis. Levámo-lo à Papelaria Fernandes e os funcionários nem queriam acreditar na alegria de algo tão simples…"
Foi na Quinta Pedagógica dos Olivais, há pouco mais de um mês, que uma surpresa, a que deu o nome de Luca, mudou a vida de Marta. "Levámo-la a almoçar ao McDonald's e depois fomos ver os animais. No final da visita, o cão estava numa jaula. Ela quis logo abrir para lhe mexer e disse que queria muito ter um assim", conta Patrícia Couto Santos, uma das voluntárias da Terra dos Sonhos que ajudou a concretizar o desejo desta menina de cinco anos.
No final, Marta já estava cansada, mas quando se sentaram para descansar apareceu o Rik e Rok, as mascotes da marca Auchan. "Levantou-se num instante, e com um sorriso, foi logo ter com eles. Levaram-na novamente à jaula do cão, que já tinha a porta aberta, e ela brincou um bocadinho com ele. No final, foi a surpresa. A mãe disse-lhe que o cão era para ela. Nem queria acreditar."
Há oito meses que Marta luta contra uma leucemia que lhe fez cair o cabelo e alterou drasticamente a rotina. Deixou de ir à escola a tempo inteiro, e passa mais tempo no IPO do que a brincar, como as meninas da sua idade. A descrição feita por Patrícia, de uma Marta alegre e vivaça, contrasta com a menina prostrada e indisposta que hoje pede o colo da mãe para descansar. É terça-feira, acabou de sair da quimioterapia, e apesar de ver Luca lá fora no jardim a saltitar e a abanar o rabo, Marta não está com forças para se juntar à brincadeira.
Com ar cansado e com a ajuda da mãe, desenha um cãozinho e um sol, numa alusão ao dia em que trouxe o westie terrier para casa. Assente com a cabeça que este foi um momento inesquecível, e responde com um ténue sorriso às investidas de Patrícia que tenta animá-la, falando-lhe de Mel, a golden retrivier que mora lá em casa há mais tempo.
Apesar de já ter uma cadela, Marta sempre sonhou ter um cão pequeno, para brincar com facilidade. Luca é isso mesmo, um cãozinho branco, que parece a pilhas, e lhe permite brincar com segurança, sem pôr em risco a sua frágil saúde. Aliás, confirmar com os médicos que este era um sonho exequível, sem condicionantes, foi uma das primeiras tarefas da equipa da Terra dos Sonhos, para além de confirmar junto de Dina Barroso, a mãe de Marta, que este era realmente o seu desejo.
Depois, a família promoveu um encontro dos voluntários com a menina no parque infantil de Loures, e Patrícia ouviu da sua boca o desejo de ter um cão. "Curiosamente, uma das vezes que a vi no IPO, antes da surpresa, ela estava internada e tinha um cão de peluche que era praticamente uma réplica do Luca", recorda a jovem de 23 anos, estudante de medicina dentária e voluntária há um ano.
Marta sabe que tem "um dói dói muito grande", explica Dina Barroso, mas apesar de já se sentir desgastada e saturada do tratamento, ainda tem um longo caminho de recuperação pela frente. "Se tudo correr bem, e não houver problemas, claro", ressalva a mãe, consciente de que a gravidade do assunto encurta a margem de certezas. "Tem sido muito difícil", desabafa Dina, obrigada a deixar o trabalho de monitora de crianças com deficiência para se dedicar exclusivamente à filha. "Nesta doença nunca se sabe. Aprendemos a viver apenas um dia de cada vez."
Bruno viu a Suíça pela última vez
Também foi assim que Bruno aprendeu a viver. Um dia de cada vez. Apesar da doença incurável que lhe foi diagnosticada aos 30 anos não lhe augurar uma vida longa, Bruno fez o seu percurso. Da resistência à aceitação da morte, até conseguir ajustar as suas expectativas à situação clínica. É para isso mesmo que trabalham os médicos, enfermeiros, psicólogos, voluntários, e até o padre da equipa de cuidados paliativos do Hospital da Luz.
Foi pela mão de um dos membros, a enfermeira Sandra Figueiredo, que Bruno pôde concretizar o sonho de ir à Suíça. Poucas semanas antes de morrer. "Era o último sítio que queria ver", recorda Sandra, que acompanhou Bruno no hospital e depois na aventura à Suíça, onde tinha vivido a adolescência.
"Queria ver a família, despedir-se dos amigos e professores. Apesar de estar debilitado fisicamente, estava muito capacitado em termos de decisão. A sua força de vontade fez com que estivesse melhor na altura da viajar", conta esta profissional de 26 anos. A exibição de uma reportagem televisiva onde foi contada a sua história, permitiu-lhe arranjar um patrocinador para a viagem.
Durante cinco dias, Bruno e a família passearam em terras suíças, capturando em imagens cada momento. Da cadeira de rodas, ou do carro, viu Berna, o rio, o verde e branco das montanhas, e reencontrou-se com os amigos. "Ele estava muito entusiasmado. Quis escolher o hotel e tratar de algumas coisas. Mas foram momentos muito emocionantes. Encontrou-se com as pessoas para lhes dizer que seria o último momento em que o veriam. Conseguiu despedir-se. Isso é muito importante", afirma a enfermeira que recorda este doente como uma pessoa maravilhosa. Sandra estava sempre ao seu lado, atenuava-lhe as dores e os sintomas com medicação paliativa.
No regresso, vinha muito feliz, mas também introspectivo. "Veio com a sensação de que tinha cumprido o seu último sonho e já podia viver em paz os últimos dias. No fundo, aceitou por completo que ia morrer. E deixou-se ir", conta Sandra Figueiredo, que guarda saudades do doente que nem há um ano faleceu. Estava, também, acrescenta, imensamente grato pela oportunidade que lhe tinham dado.
A fase terminal, que chegou um mês após esta experiência, foi mais serena. Passava os dias no quarto, a reviver as viagens através das fotografias do computador, ao lado da família que o acompanhava 24 horas por dia. "Percebeu perfeitamente que tinha chegado a sua hora, mas que o mais importante era estar tranquilo". Ou seja, diz Sandra, "foi capaz de se despedir de toda a gente e de fazer as pazes com a vida, e com todas as suas revoltas", compreensíveis para quem vê a vida escapar-se entre os dedos aos 31 anos.
Sandra Figueiredo lida diariamente com pessoas como Bruno, com doenças incuráveis. Apesar de não desvalorizar a dor de quem sente a vida por um fio está certa de que é possível proporcionar momentos de enorme felicidade às pessoas nos seus últimos dias. Acredita que trabalhar a esperança não é acreditar na cura mas desfrutar dos últimos momentos com qualidade.
Foi esse o caminho feito por Bruno, uma pessoa super activa que estava habituado a controlar a sua vida. "Para isto ninguém faz planos...", lembra Sandra. "Ao início foi complicado trabalhar com ele. Era difícil desarmá-lo. No fim, acreditamos que morreu tranquilo."
Jornalista: Rita Carvalho
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